Considerado o pai da literatura
infanto-juvenil, sua obra continua a ser lida e analisada mesmo 70 anos após
sua morte
por: Laura Dantas
O primeiro
episódio do Sítio do Picapau Amarelo,
série baseada nos livros infantis do escritor Monteiro Lobato (1882-1948), foi
ao ar em 1952, pela extinta TV Tupi. Desde os anos 50, gerações de crianças
passaram a assimilar as histórias do folclore nacional com a dos personagens
que viviam uma vida tranquila e cheia de imaginação no interior de São Paulo.
Monteiro Lobato
foi o primeiro autor a escrever histórias infantis no Brasil, antes dele, os títulos
internacionais como os contos de fadas, eram apenas traduzidos. Foi ele quem
inaugurou o gênero literário no país ao publicar A menina do nariz arrebitado (1921), e misturar as histórias já
conhecidas pelas crianças com as que ele começara a escrever.
Em 2018, a
morte de Lobato completou 70 anos, e de acordo com a Lei 9.610/98 de Direitos
Autorais, toda a obra do escritor passou a estar em domínio público em 2019.
Com isso, seu texto pôde ser alterado e republicado sem prévia autorização. Foi
pensando nisso que o autor Pedro Bandeira, ganhador do Prêmio Jabuti (1986) e
que escreve livros para o público infanto-juvenil desde 1972, decidiu
reescrever Reinações de Narizinho
(1930), retirando termos considerados de cunho racista.
Bandeira fala
que a inspiração para recontar uma história que faz parte do imaginário
infantil do universo do Sítio do Picapau
Amarelo veio da sua experiência como fã. “Sou leitor de Lobato desde a mais
tenra idade e continuei a lê-lo e a estudá-lo ao longo de minha vida. Assim,
quando ele entrou em domínio público, eu só poderia mesmo levar sua obra ao meu
público, ressaltando suas imensas qualidades”, declara.
André
Luiz Ming Garcia, que possui doutorado em Letras pela Universidade de São
Paulo, fala da importância de continuar publicando os textos lobatianos. “Quando
ela, [literatura], é uma obra com o tipo de abertura e de riqueza de sentidos e
de estilo como a do Monteiro Lobato, ela pode ser lida em qualquer época, além
disso, quando a gente estuda literatura infantil e juvenil brasileira, a gente
vê que existe uma época pré-lobatiana e aquilo que veio a partir de Monteiro
Lobato, ele promoveu uma revolução na forma de se fazer literatura infantil no
Brasil”, conta.
Pedro
Bandeira concorda. “[É importante continuar a publicar Monteiro Lobato] porque
ele é um dos maiores contistas para adultos da primeira metade do século XX e o
genial criador da literatura infantil na qual todos nós, os autores atuais, nos
baseamos” completa o autor.
A vida de Monteiro Lobato
Neto bastardo
do Visconde de Tremembé, José Bento Monteiro Lobato nasceu no dia 18 de abril
de 1882, na cidade de Taubaté. Ainda cedo, na adolescência, ficou órfão de pai
e mãe e passou a ser cuidado pelo avô, que o obrigou a frequentar a Faculdade
de Direito do Largo São Francisco, porém antes mesmo de ingressar na faculdade,
Lobato já demonstrava interesse pela escrita, havia criado, ainda no colégio,
seu primeiro jornal.
Formado, Monteiro
volta para Taubaté, começa a namorar Maria Pureza da Natividade, que mais tarde
viria a ser sua esposa e mãe de seus quatro filhos, Marta, Edgar, Guilherme e
Ruth. Durante toda a vida, Lobato experimenta diversas profissões, é promotor, fazendeiro,
escritor, tradutor, crítico literário, editor, empreendedor e inovador ao
montar a primeira editora de livros brasileira e publicar Urupês (1918).
Em meados da
década de 1920, lança seu primeiro livro destinado às crianças e inaugura a
literatura infanto-juvenil nacional, neste período o escritor funda sua
primeira editora, a Monteiro Lobato &
Cia, que cinco anos depois vai à falência. Decide então viver em Nova
Iorque com a família, e é lá que em 1929 ele perde todo o dinheiro na quebra da
bolsa de valores. Falido, volta ao Brasil, onde começa sua campanha pelo
Petróleo Nacional.
Dedica boa
parte de sua vida a defender o petróleo e as reformas sociais que ajudariam os
homens do campo, o autor escreve O escândalo
do Petróleo (1936) onde conta que o governo estava mais interessado em
vender as riquezas naturais do país do que em ajudar a população a se
industrializar.
A partir de
1937 livros passaram a sofrer censura do Estado Novo de Getúlio Vargas e da Igreja
Católica, tendo seus conteúdos considerados doutrinas perigosas para a
construção de uma juventude saudável e patriótica. Lobato não escapa da
repressão por conta de suas ideias políticas contrarias ao governo, e ele que
até então era lido e amado pelas crianças em todas as escolas, passa a ser
proibido e tem livros queimados em praça pública.
Em 1941 o autor
é preso por subversão e desrespeito ao escrever uma carta à Vargas. Em meio as
desavenças com o então presidente, os dois filhos de Monteiro, Guilherme e
Edgar, morrem, e o escritor passa a viver uma crise econômica e emocional. Depois,
muda-se para a Argentina com a esposa, onde funda outra editora, a Acteon, mas em seguida retorna a São Paulo,
lugar que passa os últimos anos de vida.
Lobato que já havia
passado por um derrame anos antes fica muito doente em 1948, mas não segue as
prescrições médicas e nem toma os remédios recomendados. Bastante deprimido com
a vida, o escritor morre na madrugada de 4 de julho, deixando esposa, filhas e
netos. Seu corpo foi velado na Biblioteca Municipal de São Paulo com cortejo
até o Cemitério da Consolação, onde foi enterrado.
A polêmica do racismo
Em 2010, Monteiro Lobato foi acusado de racismo,
por Antônio Gomes da Costa Neto, técnico em Gestão Escolar do Distrito Federal,
que pediu ao Conselho Nacional de Educação (CNE) que não fossem mais usados
materiais didáticos com expressões racistas na Educação Básica e Superior do
Distrito Federal. A denuncia se deu por conta da utilização do livro Caçadas de Pedrinho (1933) do autor.
Neste livro o personagem principal (Pedrinho), descreve a personagem Tia Nastácia de forma pejorativa, como quando diz que ela “trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima”. Desde então, toda a literatura lobatiana passou a ser examinada e denunciada por ativistas do movimento negro, é o que diz o poeta Davi Nunes. “O movimento negro denuncia há tempos o racismo nas obras de Monteiro Lobato. Toda essa discussão e tensionamento existente hoje ocorrem devido às pressões feitas pelos intelectuais negros” declara.
Neste livro o personagem principal (Pedrinho), descreve a personagem Tia Nastácia de forma pejorativa, como quando diz que ela “trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima”. Desde então, toda a literatura lobatiana passou a ser examinada e denunciada por ativistas do movimento negro, é o que diz o poeta Davi Nunes. “O movimento negro denuncia há tempos o racismo nas obras de Monteiro Lobato. Toda essa discussão e tensionamento existente hoje ocorrem devido às pressões feitas pelos intelectuais negros” declara.
Em 2012, não houve acordo entre a parte denunciante e o Ministério da Educação, e o Ministro Luis Fux do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os professores, ao lerem Monteiro Lobato em sala, deveriam explicar os termos de cunho racista aos alunos, pois a obra não podia ser alterada.
Passado
o tempo, agora juridicamente são permitidas alterações nos textos de Lobato, o
escritor Pedro Bandeira pretende retirar as expressões que tanto desagradam o
público leitor nos dias atuais, e diz. “Esquecer o que não se gosta é sempre
normal em adaptações. Em ‘Reinações’, o suposto racismo não passa de chamar Tia
Nastácia de ‘negra’ e de uma vez a Emília xingá-la de ‘negra beiçuda’. A
genialidade de Lobato é muito mais do que isso”, garante.
Passado o tempo, agora juridicamente são permitidas alterações nos textos de Lobato, o escritor Pedro Bandeira pretende retirar as expressões que tanto desagradam o público leitor nos dias atuais, e diz. “Esquecer o que não se gosta é sempre normal em adaptações. Em ‘Reinações’, o suposto racismo não passa de chamar Tia Nastácia de ‘negra’ e de uma vez a Emília xingá-la de ‘negra beiçuda’. A genialidade de Lobato é muito mais do que isso”, garante.
Já Nunes, acredita que os xingamentos e expressões de tratamentos dados à Tia Nastácia são assuntos mais sérios e devem ser discutidos. “O problema não são só os termos racistas, as obras de Lobato tinham e têm uma intenção eugenista de apagamento e de pejorativar a diversidade racial presente no Brasil. É o racismo mais espírito de porco, que contamina e estrutura a sociedade brasileira”, explica.
Embora a decisão do STF tenha sido contextualizar os termos dos livros, aparentemente não é o que acontece na prática. A professora de Educação Infantil, Sabrina Costa Ferreira, comenta que é possível achar na internet os textos de Lobato já modificados para apresentar aos alunos, justamente com as expressões de cunho racista retiradas.
Esse assunto também não é pauta entre os alunos de Ensino Infantil quando costumam ser apresentados à obra. “Na faculdade eu fui orientada, na Educação Infantil, a não abordar esse assunto porque não vale a pena, porque os alunos são muito pequenos para entender”, conclui Sabrina.
A professora de
Ensino Infantil, Luciana Aparecida Biazin Silva, diz que já trabalhou a
temática do racismo com alunos do Ensino Fundamental II. “Na época que foi
levantado essa questão dessas palavras, eu fiz uma roda de conversa e expliquei
que antigamente, as coisas eram mais permissíveis do que eram hoje e que hoje
em dia não se usa mais o termo, que não é apropriado”, conta.
Para André Luiz Ming Garcia, professor de Letras
da USP existe outra forma de analisar os termos considerados racista, eles
podem estar presentes no texto como uma forma de chocar o leitor. “Nunca foi
bem visto uma pessoa agredir a outra pelas características físicas que ela
tenha, sejam elas aludidas à raça, ao sobrepeso, a altura, estatura, ou
qualquer tipo de característica física, então aquilo está lá, aquilo choca o
leitor realmente e o leitor está vendo que aquilo não se faz” e completa, “eu
não acho que esses trechos deveriam ser subtraídos, eu acho que esses trechos têm
que ser discutidos”, aponta Garcia.
Bandeira também
entende que os textos de Lobato precisam ter a época em que foram escritos
levados em consideração. “Eu também não adaptaria ‘Caçadas de Pedrinho’, pois
é uma história em que as crianças do Sítio matam uma onça. Eu amo as onças e
jamais criaria meus protagonistas matando onças. Só que, na época de Lobato,
havia muitas onças, que invadiam chiqueiros e galinheiros, devastando a criação
nas fazendas, e o Brasil era um país rural, atrasadíssimo” finaliza o autor.
Apesar disso, Davi é categórico ao dizer que os textos não devem ser apresentados às crianças. “Acho que toda mecânica feita na obra de Monteiro Lobato para mantê-la viva aos olhos de crianças negras, brancas ou indígenas é nociva. Não há justificativa para obra de Monteiro Lobato que não seja engrenar, mais um pouco, no campo ideológico, simbólica, literário, a máquina racista que tratora negros todos os dias nesse país”, conclui.
Monteiro Lobato na educação
Monteiro Lobato na educação
Ótimo trabalho, Laura!
ResponderExcluirIncrível a riqueza de detalhes e a clareza em que tudo foi escrito, achei bem elucidativo. Parabéns!