segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

A relevância de Monteiro Lobato na atualidade

Considerado o pai da literatura infanto-juvenil, sua obra continua a ser lida e analisada mesmo 70 anos após sua morte
por: Laura Dantas

O primeiro episódio do Sítio do Picapau Amarelo, série baseada nos livros infantis do escritor Monteiro Lobato (1882-1948), foi ao ar em 1952, pela extinta TV Tupi. Desde os anos 50, gerações de crianças passaram a assimilar as histórias do folclore nacional com a dos personagens que viviam uma vida tranquila e cheia de imaginação no interior de São Paulo.

Monteiro Lobato foi o primeiro autor a escrever histórias infantis no Brasil, antes dele, os títulos internacionais como os contos de fadas, eram apenas traduzidos. Foi ele quem inaugurou o gênero literário no país ao publicar A menina do nariz arrebitado (1921), e misturar as histórias já conhecidas pelas crianças com as que ele começara a escrever.

Em 2018, a morte de Lobato completou 70 anos, e de acordo com a Lei 9.610/98 de Direitos Autorais, toda a obra do escritor passou a estar em domínio público em 2019. Com isso, seu texto pôde ser alterado e republicado sem prévia autorização. Foi pensando nisso que o autor Pedro Bandeira, ganhador do Prêmio Jabuti (1986) e que escreve livros para o público infanto-juvenil desde 1972, decidiu reescrever Reinações de Narizinho (1930), retirando termos considerados de cunho racista.

Bandeira fala que a inspiração para recontar uma história que faz parte do imaginário infantil do universo do Sítio do Picapau Amarelo veio da sua experiência como fã. “Sou leitor de Lobato desde a mais tenra idade e continuei a lê-lo e a estudá-lo ao longo de minha vida. Assim, quando ele entrou em domínio público, eu só poderia mesmo levar sua obra ao meu público, ressaltando suas imensas qualidades”, declara.

André Luiz Ming Garcia, que possui doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo, fala da importância de continuar publicando os textos lobatianos. “Quando ela, [literatura], é uma obra com o tipo de abertura e de riqueza de sentidos e de estilo como a do Monteiro Lobato, ela pode ser lida em qualquer época, além disso, quando a gente estuda literatura infantil e juvenil brasileira, a gente vê que existe uma época pré-lobatiana e aquilo que veio a partir de Monteiro Lobato, ele promoveu uma revolução na forma de se fazer literatura infantil no Brasil”, conta.

Pedro Bandeira concorda. “[É importante continuar a publicar Monteiro Lobato] porque ele é um dos maiores contistas para adultos da primeira metade do século XX e o genial criador da literatura infantil na qual todos nós, os autores atuais, nos baseamos” completa o autor.

A vida de Monteiro Lobato

Neto bastardo do Visconde de Tremembé, José Bento Monteiro Lobato nasceu no dia 18 de abril de 1882, na cidade de Taubaté. Ainda cedo, na adolescência, ficou órfão de pai e mãe e passou a ser cuidado pelo avô, que o obrigou a frequentar a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, porém antes mesmo de ingressar na faculdade, Lobato já demonstrava interesse pela escrita, havia criado, ainda no colégio, seu primeiro jornal.

Formado, Monteiro volta para Taubaté, começa a namorar Maria Pureza da Natividade, que mais tarde viria a ser sua esposa e mãe de seus quatro filhos, Marta, Edgar, Guilherme e Ruth. Durante toda a vida, Lobato experimenta diversas profissões, é promotor, fazendeiro, escritor, tradutor, crítico literário, editor, empreendedor e inovador ao montar a primeira editora de livros brasileira e publicar Urupês (1918).

Em meados da década de 1920, lança seu primeiro livro destinado às crianças e inaugura a literatura infanto-juvenil nacional, neste período o escritor funda sua primeira editora, a Monteiro Lobato & Cia, que cinco anos depois vai à falência. Decide então viver em Nova Iorque com a família, e é lá que em 1929 ele perde todo o dinheiro na quebra da bolsa de valores. Falido, volta ao Brasil, onde começa sua campanha pelo Petróleo Nacional.

Dedica boa parte de sua vida a defender o petróleo e as reformas sociais que ajudariam os homens do campo, o autor escreve O escândalo do Petróleo (1936) onde conta que o governo estava mais interessado em vender as riquezas naturais do país do que em ajudar a população a se industrializar.

A partir de 1937 livros passaram a sofrer censura do Estado Novo de Getúlio Vargas e da Igreja Católica, tendo seus conteúdos considerados doutrinas perigosas para a construção de uma juventude saudável e patriótica. Lobato não escapa da repressão por conta de suas ideias políticas contrarias ao governo, e ele que até então era lido e amado pelas crianças em todas as escolas, passa a ser proibido e tem livros queimados em praça pública.

Em 1941 o autor é preso por subversão e desrespeito ao escrever uma carta à Vargas. Em meio as desavenças com o então presidente, os dois filhos de Monteiro, Guilherme e Edgar, morrem, e o escritor passa a viver uma crise econômica e emocional. Depois, muda-se para a Argentina com a esposa, onde funda outra editora, a Acteon, mas em seguida retorna a São Paulo, lugar que passa os últimos anos de vida.

Lobato que já havia passado por um derrame anos antes fica muito doente em 1948, mas não segue as prescrições médicas e nem toma os remédios recomendados. Bastante deprimido com a vida, o escritor morre na madrugada de 4 de julho, deixando esposa, filhas e netos. Seu corpo foi velado na Biblioteca Municipal de São Paulo com cortejo até o Cemitério da Consolação, onde foi enterrado.

A polêmica do racismo

Em 2010, Monteiro Lobato foi acusado de racismo, por Antônio Gomes da Costa Neto, técnico em Gestão Escolar do Distrito Federal, que pediu ao Conselho Nacional de Educação (CNE) que não fossem mais usados materiais didáticos com expressões racistas na Educação Básica e Superior do Distrito Federal. A denuncia se deu por conta da utilização do livro Caçadas de Pedrinho (1933) do autor.

Neste livro o personagem principal (Pedrinho), descreve a personagem Tia Nastácia de forma pejorativa, como quando diz que ela “trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima”. Desde então, toda a literatura lobatiana passou a ser examinada e denunciada por ativistas do movimento negro, é o que diz o poeta Davi Nunes. “O movimento negro denuncia há tempos o racismo nas obras de Monteiro Lobato. Toda essa discussão e tensionamento existente hoje ocorrem devido às pressões feitas pelos intelectuais negros” declara.

Em 2012, não houve acordo entre a parte denunciante e o Ministério da Educação, e o Ministro Luis Fux do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os professores, ao lerem Monteiro Lobato em sala, deveriam explicar os termos de cunho racista aos alunos, pois a obra não podia ser alterada.


Passado o tempo, agora juridicamente são permitidas alterações nos textos de Lobato, o escritor Pedro Bandeira pretende retirar as expressões que tanto desagradam o público leitor nos dias atuais, e diz. “Esquecer o que não se gosta é sempre normal em adaptações. Em ‘Reinações’, o suposto racismo não passa de chamar Tia Nastácia de ‘negra’ e de uma vez a Emília xingá-la de ‘negra beiçuda’. A genialidade de Lobato é muito mais do que isso”, garante.

Já Nunes, acredita que os xingamentos e expressões de tratamentos dados à Tia Nastácia são assuntos mais sérios e devem ser discutidos. “O problema não são só os termos racistas, as obras de Lobato tinham e têm uma intenção eugenista de apagamento e de pejorativar a diversidade racial presente no Brasil. É o racismo mais espírito de porco, que contamina e estrutura a sociedade brasileira”, explica.

Embora a decisão do STF tenha sido contextualizar os termos dos livros, aparentemente não é o que acontece na prática. A professora de Educação Infantil, Sabrina Costa Ferreira, comenta que é possível achar na internet os textos de Lobato já modificados para apresentar aos alunos, justamente com as expressões de cunho racista retiradas.

Esse assunto também não é pauta entre os alunos de Ensino Infantil quando costumam ser apresentados à obra. “Na faculdade eu fui orientada, na Educação Infantil, a não abordar esse assunto porque não vale a pena, porque os alunos são muito pequenos para entender”, conclui Sabrina.

A professora de Ensino Infantil, Luciana Aparecida Biazin Silva, diz que já trabalhou a temática do racismo com alunos do Ensino Fundamental II. “Na época que foi levantado essa questão dessas palavras, eu fiz uma roda de conversa e expliquei que antigamente, as coisas eram mais permissíveis do que eram hoje e que hoje em dia não se usa mais o termo, que não é apropriado”, conta.

Para André Luiz Ming Garcia, professor de Letras da USP existe outra forma de analisar os termos considerados racista, eles podem estar presentes no texto como uma forma de chocar o leitor. “Nunca foi bem visto uma pessoa agredir a outra pelas características físicas que ela tenha, sejam elas aludidas à raça, ao sobrepeso, a altura, estatura, ou qualquer tipo de característica física, então aquilo está lá, aquilo choca o leitor realmente e o leitor está vendo que aquilo não se faz” e completa, “eu não acho que esses trechos deveriam ser subtraídos, eu acho que esses trechos têm que ser discutidos”, aponta Garcia.

Bandeira também entende que os textos de Lobato precisam ter a época em que foram escritos levados em consideração. “Eu também não adaptaria ‘Caçadas de Pedrinho’, pois é uma história em que as crianças do Sítio matam uma onça. Eu amo as onças e jamais criaria meus protagonistas matando onças. Só que, na época de Lobato, havia muitas onças, que invadiam chiqueiros e galinheiros, devastando a criação nas fazendas, e o Brasil era um país rural, atrasadíssimo” finaliza o autor.

Apesar disso, Davi é categórico ao dizer que os textos não devem ser apresentados às crianças. “Acho que toda mecânica feita na obra de Monteiro Lobato para mantê-la viva aos olhos de crianças negras, brancas ou indígenas é nociva. Não há justificativa para obra de Monteiro Lobato que não seja engrenar, mais um pouco, no campo ideológico, simbólica, literário, a máquina racista que tratora negros todos os dias nesse país”, conclui.

Monteiro Lobato na educação

O Dia Nacional do Livro Infantil é comemorado em 18 de abril, dia do nascimento de Monteiro Lobato. Neste período, por todo o país escolas costumam trabalhar a vida e obra do autor, como é o caso da professora de Educação Infantil, Sirley Alves de Lima Costa. “A gente geralmente introduz uma leitura, a gente escolhe um livro ou um personagem especifico, explica um pouco sobre o autor, quem foi Monteiro Lobato, trabalha a biografia dele, a sua importância, depois a gente estrutura atividades” conta.



Livros de Monteiro Lobato na biblioteca da escola EPG Elis Regina, na cidade de Guarulhos - SP. (Foto: Laura Dantas)

Sendo o Sítio do Picapau Amarelo talvez a sua obra mais famosa entre as crianças, também é baseada nela que as professoras trabalham atividades lúdicas com os alunos do ensino infantil, como conta a professora Luciana Aparecida Biazin Silva. “Eu já desenvolvi teatro, com a personagem em foco Emília. Palitoche com personagens, quebra-cabeça, confecção da Cuca com material reciclável”, diz.

Joyce de Paula Batista, também professora do Ensino Infantil, explica como já trabalhou os textos com os alunos. “Usei dança, usei história, vídeo, música da Cuca, do Saci, e toda essa história de imaginação foram usadas com eles. Eu já trabalhei letra de música, que eles exploraram o significado de algumas palavras que eles não conheciam. [Esse ano] não trabalhei personagem isolado, eu separei um dia e fiz um livrinho sobre cada personagem, os perfis dos personagens principais e um pouco sobre a biografia do Monteiro, a gente também fez uma maquete do Sítio” afirma.

Lobato costuma ser escolhido para fazer parte do conteúdo pedagógico das crianças do Infantil, quando os professores abordam a pluralidade da cultura brasileira em sala de aula. A professora, Aline Carolina da Silva Pereira, explica como é feita essa escolha. “Na educação infantil é praticamente 100% de que todos os livros infantis usados pelas professoras são de literatura nacional, basicamente todo o acervo é de literatura nacional, até porque, como é voltada para as crianças muito pequenas, quando a gente pega um livro de literatura internacional ainda que ele seja traduzido, a gente perde muito do que é próprio da nossa cultura, então a gente pensa muito nisso”, conta.

Desde a elaboração da Constituição Federal de 1988, existe a ideia de desenvolver uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) um projeto integrando todo o ensino nacional, tanto para rede pública como privada, no entanto só foi possível em 2018, 30 anos depois da ideia inicial. Antes disso a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDBEN) já havia desenvolvido um protótipo do que é apresentado hoje.

No texto da Base, é recomendado aos professores usarem a literatura para contextualizar a diversidade étnico-racial existente no país, assim como toda a cultura do povo brasileiro. Porém a BNCC não indica qual livro e autor nacional deve ser usado para isso.

Para Joyce, a escolha das obras lobatianas deve ser feita por um único motivo. “Por ser um clássico e as crianças precisam saber da história”, garante a professora. André Luiz Ming Garcia destaca. “É pela riqueza da obra que se justifica que ela continue sendo lida, quando a obra é rica ela não perde essa riqueza, ela ganha riqueza, porque ela vai sendo ressignificada ao longo do tempo, é uma herança cultural que a gente tem”, declara.

O folclore brasileiro contado por Lobato

Muitas crianças brasileiras passaram a ter contato com o folclore nacional pelas mãos de Monteiro Lobato. Em 1918 ele tinha feito um estudo a pedido do jornal O Estado de São Paulo em que falava da origem da lenda do Saci Pererê. Tempos depois, ao lançar seus livros direcionados ao público infantil, não só o Saci, como outros personagens do imaginário popular brasileiro, começaram a fazer parte dos textos dele. O folclorista Roberto Marttini, comenta. “Os livros do Monteiro Lobato contribuíram e muito [para a disseminação do folclore], povoando o universo infantil e alcançando ainda mais pessoas” garante.

Quem cresceu assistindo a história do Sítio na TV ou quem a leu pôde ver os personagens do folclore como algo próximo à realidade, mas até mesmo quem é apresentado a esses contos na escola, em algum momento recebe a influência do que Monteiro Lobato um dia escreveu. A professora Sabrina Costa Ferreira comenta que para seus alunos “não tem como falar do folclore e não falar de alguns personagens dele [do M. Lobato], o Saci, a Cuca. As crianças mesmo já remetem o folclore [à ele]”, explica.

Mural de personagens do folclore brasileiro na escola CEI Durval Miolla (Foto: Laura Dantas).


As histórias de Lobato muitas vezes servem para inserir o universo infantil à cultura popular brasileira. A professora Sirley Alves de Lima Costa comenta. “Quando você vai falar de Monteiro Lobato, embora eles [alunos] não saibam quem é Monteiro Lobato, eles conhecem a Emília, o Saci, então fica mais fácil de entender e interagir, por isso que geralmente a gente opta por utilizá-lo para explicar o folclore e outras lendas, como o Boitatá, Iara. É um ponto de partida” destaca.

Luciana Aparecida Biazin Silva, professora, disse que muitas vezes esses personagens folclóricos também são apresentados em casa. “[As crianças] já trazem essa bagagem de casa, porque o Monteiro Lobato, o Sítio, os personagens, fizeram parte da infância de muitos pais dos alunos, então eles acabam contando para as crianças e elas já trazem de casa”, comenta.

No Brasil, o Dia do Folclore é comemorado todo 22 de agosto desde 1965, como uma forma de resgatar a importância da celebração da cultura popular do país. Além do dia do folclore, outras três datas são comemoradas em homenagem à cultura nacional, o dia nacional do Bumba Meu Boi (30 de junho), dia do Curupira (17 de julho) e dia do Saci (31 de outubro).

Este último inclusive como forma de reafirmar a cultura nacional, pois no mesmo dia é comemorado o Halloween, festa tipicamente norte-americana. Marttini diz. “À medida que as festas de Halloween foram crescendo, alguns militantes folcloristas brasileiros se mobilizaram para valorizar nosso próprio ‘duende’, na definição de um Saci Pererê”, defende o folclorista. No entanto, na Câmara dos Deputados existe apenas o Projeto de Lei do Dia do Saci, que desde 2003 não foi sancionada para território nacional. Em 2004, o Dia do Saci foi instituído no estado de São Paulo, pelo governador Geraldo Alckmin. 

Sítio do Picapau Amarelo: um marco de gerações

A primeira versão do Sítio do Picapau Amarelo foi exibida por dez anos (1952-1962) pela extinta TV Tupi, nessa época os programas eram ao vivo e as imagens em preto e branco. A proposta de transformar umas das obras mais conhecidas de Monteiro Lobato em série para televisão foi dos críticos literários Tatiana Belinky e Júlio Gouveia.

Em 1964, houve uma rápida produção feita pela TV Cultura e em 1967 a versão foi apresentada pela TV Bandeirantes. Na década de 1970 foi vez da Rede Globo ter interesse na história e em 1977 o primeiro episódio do Sítio foi produzido pelo canal, escrito por Paulo Afonso Grisolli, Wilson Rocha e mais tarde por Benedito Ruy Barbosa, a história permaneceu no ar até 1986. A segunda versão apresentada pela Rede Globo estreou em 2001 e ficou no ar até 2007.

A aposentada Rosângela de Moura, 60 anos, assistiu às versões apresentadas nos anos 1960, 1970 e 1980 quando ainda era criança e adolescente. “Nas duas primeiras vezes que eu assisti, nos anos 70 e nos anos 80, eu ainda não era mãe, então aquilo tinha um encantamento para mim, uma coisa que me transportava para dentro do Sítio”, conta Rosangela.

Rosangela e Janaina, mãe e filha fãs do Sítio do Picapau Amarelo (Foto: Acervo pessoal).

Nos anos 2000 ela teve a oportunidade de assistir novamente, mas dessa vez como mãe, acompanhando a filha Janaina Alves de Moura e Moura, 19 anos. “Quando eu me tornei mãe em 1999, que a minha filha teve a possibilidade [de assistir] quando novamente voltou para as telinhas, eu voltei a viver, acho, que a mesma coisa, ter os mesmos sentimentos [sobre o Sítio]”, garante.


Janaina conta como o carinho pela obra de Monteiro Lobato foi herdado da mãe. “O que eu mais lembro é que a minha mãe tinha comprado uma fita do Sítio do Picapau Amarelo, e eu assistia praticamente todos os dias os mesmos episódios, tirando também quando passava na TV, e eu contava todos os dias para a minha mãe todas as histórias do Sítio”.

Para ser adaptada para a televisão, a história teve que sofrer alterações no texto, desde 1950 os termos considerados de cunho racista foram extraídos do conteúdo que era levado ao público infantil. Os episódios eram divididos para contar as aventuras de cerca de 20 livros sobre a turma do Sítio, e o seu espaço-tempo era relativamente pequeno, já que no livro a história acontece quando o personagem Pedrinho visita a avó Dona Benta durante as férias escolares.

O enredo passou a ser em torno da personagem Emília, a boneca de pano de Narizinho, que passa a falar após tomar uma pílula falante dada pelo Dr. Caramujo. Essa seria também uma das personagens mais queridas pelo público infantil. Janaina defende a boneca. “Meu personagem favorito, e de todo mundo, com certeza, é a Emília, porque eu sempre achei ela muito engraçada, muito divertida, não tinha papas na língua, então ela era a melhor personagem”, e sua mãe continua. “Eu achava ela destemida, eu queria ser igual ela, ela tinha um raciocínio rápido para a época, ela tinha ideias mirabolantes para resolver os problemas então eu também queria”, declara.

Em uma das histórias dos livros no Sítio, Monteiro Lobato conta que tia Nastácia, a cozinheira da casa, foi uma escrava dada de presente à Dona Benta pelo marido. Tentando reparar esse episódio na linha do tempo da obra quando a história foi produzida para TV, as duas personagens passaram a ter linguagens mais próximas da amizade do que da submissão, os outros dois personagens negros da narrativa, tio Barnabé e Saci Pererê, seguiram o mesmo caminho, embora esse último fosse mais próximo das crianças do Sítio.

Mãe e filha, fãs da série, comentam como essa situação foi modificada ao ponto delas não perceberem, quando crianças, que isso podia ter acontecido. “Quando [criança] eu achava que não tinha nada a ver. Trabalhava na casa, mas não tinha a ver com escravo, na minha cabeça não tinha a ver com escravo, [mas] depois nos [anos] 80 e 2000, eu achava que tinha a ver com os escravos”, explica Rosangela.

“Eu sempre achei que ela [tia Nastácia] fosse amiga, praticamente uma irmã da Dona Benta então para mim, nunca passou isso pela minha cabeça [ser ex escrava]”, finaliza Janaina. O Sítio ficou no ar por 30 anos na televisão, levando em consideração os períodos em que deixou de ser exibido.

As cidades do autor


Nascido no Vale do Paraíba, em Taubaté, Monteiro Lobato viveu boa parte da vida na cidade, por lá casou e formou família. Quando ele nasceu, o município estava migrando da cafeicultura para a indústria, frutos da Revolução Industrial que podem ser colhidos até hoje. Com uma população estimada em mais de 314 mil pessoas, segundo o IBGE, Taubaté também é conhecida como Capital Nacional da Literatura Infantil, título que recebeu em 2011 como homenagem ao autor.

A cidade não possui nenhum dado oficial em relação ao turismo e como a figura de Monteiro afeta a população, mas a assessoria de imprensa da Prefeitura Municipal de Taubaté comenta. “Os hotéis recebem mais turistas no mês de abril”. Isso porque abril é o mês em que se celebra o dia do livro infantil e em comemoração acontece todos os anos uma feira literária, movimentando ainda mais a economia municipal.

Um dos pontos turísticos mais visitado é o Sítio do Picapau Amarelo, um museu que abriga diversos objetos da vida do autor, inclusive manuscritos e quadros pintados por ele, e é mantido pela Prefeitura Municipal de Taubaté, a entrada é gratuita. O parque oferece ainda diversas opções de cursos e peças de teatro para os visitantes.


Personagens da história de Monteiro Lobato no museu Sítio do Picapau Amarelo em Taubaté (Foto divulgação/ autor: Murilo Papareli)

Apesar da imagem do escritor ter sofrido algumas queixas em relação às acusações de racismo envolvendo seu nome, a cidade vive em harmonia com a vida e obra de Lobato. O município não o considera racista. É preciso considerar o contexto histórico-cultural da época de sua produção literária”, defende a assessoria de imprensa da cidade, e explica. “A obra é um conteúdo de época e não podemos esconder parte da nossa história, como a escravidão”, completa.

Não muito distante de Taubaté existe outro município importante na história do escritor, esse por sua vez foi batizado com o nome dele, quando se emancipou em 1948, ano de morte do autor. A 46 km de distância de Taubaté, já na Serra da Mantiqueira, Monteiro Lobato é uma cidade pequena e rural, com uma população estimada em 4.120 habitantes, segundo IBGE.

Quando Lobato era pequeno existia um povoado no território de Taubaté e Caçapava que tentava se emancipar. Esse povoado era chamado de Buquira onde existia uma fazenda com o mesmo nome, que mais tarde Monteiro recebeu de herança do avô Visconde. Até a emancipação, o município teve outros quatro nomes: Freguesia das Estacas, Freguesia de Nossa Senhora de Bonsucesso do Buquira, Vila das Palmeiras do Buquira e Vila do Buquira.

É no período fazendeiro, morando em Buquira, que o inventor da literatura infantil escreve o primeiro conto, Urupês (1918), história sobre a vida do interior no ponto de vista do caipira Jeca Tatu. Mais tarde esse seria também o cenário em que se passa o Sítio do Picapau Amarelo, segundo André Barreto, assessor de imprensa da cidade, Monteiro descreve a cachoeira, o rio e as montanhas que podem ser vistas da antiga fazenda Buquira nos livros que se passam no Sítio.

Hoje no lugar da fazenda existe um museu, assim como em Taubaté, cujo nome também é Sítio do Picapau Amarelo, com fotos e documentos da família de Monteiro Lobato, e de alguns empregados da época. De acordo com Barreto, tudo na cidade está ligado de alguma forma às histórias do escritor, sejam os nomes dos comércios, escolas e festivais literários, como no artesanato da confecção de Emílias e Viscondes.

 Para o assessor, o município “vive Lobato”, uma vivência tão intensa que até mesmo o hino da cidade fala das obras do autor. "Tens a honra de ser a mãe, Da mais famosa filha, No teu seio de magia, Nasceu a boneca “Emília”. És uma terra privilegiada, Um paraíso tão belo, De um ‘Sitio Encantado, Do Pica Pau Amarelo’”, com letra e música de Adauto Felisário Munhoz.

Todo lobatense é responsável por disseminar o texto do autor da cidade, segundo Barreto, a vida e obra do escritor é ensinada desde cedo, Monteiro Lobato é o primeiro escritor a ser apresentado para as crianças nas escolas, além de haver discussões sobre as acusações que cercam seu nome.

Um comentário:

  1. Ótimo trabalho, Laura!
    Incrível a riqueza de detalhes e a clareza em que tudo foi escrito, achei bem elucidativo. Parabéns!

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